casa com desenhos indígenas na aldeia urbana Água Bonita |
artesanato terena |
Aldeia urbana Água Bonita |
escola da aldeia urbana Água Bonita |
fachada com desenhos indígenas |
comunidade de Furnas de Boa Sorte representando a violência sofrida pelos quilombos |
Encontro do TPT em Furnas de Boa Sorte |
Morador de Furnas de Boa Sorte |
Liderança indígena Guarani-Kaiowá no encontro do TPT em Furnas de Boa Sorte |
Morro São Sebastião em Furna de Boa Sorte |
Entre os dias 10 e 15 de junho do
presente ano, tive o privilégio de conhecer a aldeia urbana Água Bonita,
localizada em Campo Grande, e a comunidade
remanescente de quilombolas Furnas de Boa Sorte, que fica entre as
cidades de Rochedo e Corguinho, no interior do estado de Mato Grosso do Sul.
Primeiramente, irei descrever o contexto
social e histórico de cada comunidade, para posteriormente fazer um paralelo
com os conceitos de Aníbal Quijano em relação à colonialidade do poder e eurocentrismo,
além da questão da interculturalidade crítica abordada pela professora
Catherine Walsh.
A
aldeia Água Bonita existe desde 2001, é a segunda aldeia urbana de Campo
Grande, foi instituída no Governo do Zeca do PT, todavia, a grande liderança
por trás da implantação da aldeia é a indígena Marta Guarani.
Localizada
na periferia da cidade, perto do bairro Tarsila do Amaral, algumas residências
são de alvenaria, com pinturas indígenas, outras são barracos, é constituída
por 60 famílias, de etnias diversas, Terena, Guarani-Kaiowá e Kadiwéu, sendo a
maioria a etnia Terena, como a aldeia fica afastada do centro da cidade é
bastante arborizada.
Observa-se
que no centro da aldeia existe uma construção em forma de círculo, que quando
foi inaugurada, não tinha paredes, só que com o decorrer do tempo, devido a
questões de segurança, foram levantadas as paredes que a cercam, hoje é o local
de reunião da comunidade, funciona
também uma escola, onde as crianças tem aula toda quarta-feira, no período
matutino, aprendem a língua terena.
Há
também uma igreja católica, uma das indígenas entrevistadas me disse que a
religião predominante é a católica, mas que atualmente muitos estão se tornando
evangélicos. Dona Maria, esposa do cacique Nito, da etnia Guarani-Kaiowá, me
relatou que os evangélicos estão proibindo os Guaranis-Kaiowá de fazer a sua
reza, impondo a religião evangélica, não respeitando a cultura dos indígenas.
As
mulheres indígenas para ajudarem na renda familiar, trabalham de diaristas,
feirantes, fazem artesanato e vendem para a Casa do Artesão, os homens
trabalham como pedreiros, carpinteiros e nos frigoríficos da cidade.
Um
dos problemas enfrentados por essa comunidade segundo seus próprios habitantes,
é que a área não é regularizada, apesar de ser uma aldeia urbana, não é
reconhecida pelo Governo Federal como sendo um território indígena, assim,
ocorre à venda de terrenos para não indígenas sem controle do Poder Público.
Já
a comunidade remanescente dos quilombos,
conhecida como Furnas de Boa Sorte, que tem aproximadamente 1.413
hectares, localizada entre Rochedo e Corguinho, é composta por 45 famílias,
tendo o registro na Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, em 1988. Seus
fundadores, José Matias Ribeiro, Bonifácio Lino Maria e João Bonifácio eram de
Minas Gerais, habitaram aquela região no final do século XIX (Disponível em: http://pt.wikiversity.org/wiki/Wikinativa/Furnas_da_Boa_Sorte).
Os
quilombos foram expropriados de suas terras por fazendeiros e grileiros, e
somente em 2007, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária)
reconhece o território como quilombola e
autoriza a desapropriação das áreas incidentes à propriedade (Disponível em: http://portal.mda.gov.br/portal/noticias/item?item_id=3574801 ).
Apesar
de ter sido reconhecida como terra quilombola, o processo de desapropriação
ainda está em andamento, fui conhecer essa comunidade devido o Encontro do
Tribunal Popular da Terra, realizado nos dias 14 e 15 de junho, que reuniu os
descendentes de quilombolas, indígenas e campesinos.
A
questão da terra foi o tema principal do encontro, participei da oficina “A
mulher na luta pela terra e na terra: classe, raça e gênero”, realizada pelo
IBISS (Instituto Brasileiro de Inovações pró- Sociedade Saudável), foram
relatados vários problemas enfrentados pela comunidade, como a falta de
transporte, na escola não há o ensino fundamental completo, também não existe a
coleta do lixo, tampouco um posto de saúde que fique próximo da comunidade.
Pois
bem, depois de apresentar o contexto social e histórico das duas comunidades, é
possível fazer um paralelo com os conceitos de Aníbal Quijano, no seu artigo
“Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, inserido no livro, “A
colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas
latino-americanas”, publicado em 2005 .
Embora
esses dois lugares tenham a sua própria história, e sejam de diferentes
contextos, ambos são atingidos pela colonialidade do poder, que segundo Quijano
(Op. cit, 2005), está vinculada a ideia de raça, como a Europa se utilizou
desta a fim de obter um controle social, na medida que o capitalismo ia se
estruturando e se expandindo.
Observar
as duas comunidades, uma formada por indígenas de várias etnias, Terena,
Guarani-Kaiowá e Kadiwéu, e outra pelos remanescentes de quilombos, é verificar
na prática que os conceitos de Quijano (2005, p. 107) continuam latentes.
A formação de relações sociais fundadas
nessa idéia, produziu na América identidades sociais historicamente novas:
índios, negros e mestiços, e redefiniu outras (...) E na medida em que as
relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais
identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais
correspondentes, com constitutivas delas, e, conseqüentemente, ao padrão de
dominação que se impunha (…)
A posterior constituição da Europa como nova
id-entidade depois da América e a expansão do colonialismo europeu ao resto do
mundo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento e com
ela à elaboração teórica da idéia de raça como naturalização dessas relações
coloniais de dominação entre europeus e não-europeus. Historicamente, isso
significou uma nova maneira de legitimar as já antigas idéias e práticas de
relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominados.
Dessa
forma, contextualizando historicamente esses dois povos, que foram dominados
pelos europeus “brancos”, obrigados a trabalhar sem serem recompensados, que
tiveram sua cultura inferiorizada, que quase foram exterminados, tendo em vista
a violência e opressão que foram submetidos, tudo em nome da concentração do
capital na Europa, verifica-se, assim, que esses povos continuam sofrendo as
consequências desse capitalismo desenfreado.
Então,
o eurocentrismo, se sobrepõe as demais culturas, estas que foram dominadas, há
um controle que visa impor os papéis sociais, tudo que é considerado “moderno”,
entrelaçado com a ideia de progresso, pertence ao velho mundo, a Europa
ocidental.
Daí,
negros e índios, nessa visão eurocêntrica, com suas “raças inferiores, capazes
somente de produzir culturas inferiores” (Quijano, 2005, p. 116), já tem o seu
papel pré-estabelecido, de apenas servir a Europa, de serem eternamente
colonizados, explorados, mão de obra barata.
Ou
se não são vistos nessa perspectiva, quando lutam em defesa dos seus direitos,
pela demarcação de suas terras, que afinal de contas, estão assegurados pela
Constituição Federal de 1988, e não tem como objetivo pertencer a esse mundo do
agronegócio, dos grandes latifúndios de soja, cana-de-açúcar, eucalipto, gado,
etc, são tratados pela sociedade como “vagabundos, preguiçosos, baderneiros”
(Disponível em: http://itapebiacontece.com/noticias/3135,itapebi-homem-e-morto-com-um-tiro-no-pescoco-na-area-invadida-por-indios.html ), pois
optaram seguir suas próprias premissas, dando as costas ao sistema capitalista.
Os
dominadores de ontem e hoje sempre estiveram muito mais próximos da burguesia
europeia, são dependentes desta, os grandes latifundiários exportam a sua
produção, assim, o mundo capitalista gira, enquanto que índios e negros, sobrevivem
confinados em reservas e favelas.
Conforme
explicita Qujano (2005, p. 123):
Por outro lado, nas outras sociedades
ibero-americanas, a pequena minoria branca no controle dos Estados
independentes e das sociedades coloniais não poderia ter tido nem sentido
nenhum interesse social comum com negros, índios e mestiços. Ao contrário, seus
interesses sociais eram explicitamente antagônicos com relação dos servos
índios e escravos negros, dado que seus privilégios compunham-se precisamente
do domínio/exploração dessas gentes. De modo que não havia nenhum interesse
nacional comum a todos eles. Por isso, do ponto de vista dos dominadores, seus
interesses sociais estiveram muito mais próximos dos interesses de seus pares
europeus, e por isso estiveram sempre inclinados a seguir os interesses da
burguesia europeia. Eram, pois, dependentes.
A colonialidade
do poder, atingiu principalmente a América Latina, pois, se utilizou da raça
como instrumento de dominação, portanto, essa estrutura eurocêntrica, teve
ainda total recepcionalidade, uma vez que foi adotada pelos grupos dominantes,
com o intuito do Estado-nação se consolidar nas veredas do sistema capitalista.
Apesar
de serem reconhecidos pela Constituição Federal de 1988, a organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, dos índios, bem como os direitos
originários dos índios, em relação as suas terras, conforme dispõem os arts. 231 e 232, também aos remanescentes das comunidades dos
quilombos foi reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
os títulos respectivos, de acordo com o art. 68, dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias, a Carta Magna, na prática não é cumprida.
Ainda,
foi publicado em 2003, o Decreto nº 4.887, concernente à afirmação dos direitos
territoriais dos grupos étnicos minoritários, e recentemente a Presidenta
Dilma, publicou uma lei que visa reservar uma porcentagem de 20% das vagas do
serviço público do Poder Executivo para os negros, além das cotas para as
universidades.
Poderia
se dizer então, que esses avanços de reconhecer os aspectos culturais dos
indígenas, e dos remanescentes de quilombolas, que valoriza a diversidade
étnica e regional, acontece numa perspectiva de interculturalidade.
No
ensinamento de Catherine Walsh, no seu artigo “Interculturalidade crítica e
educação intercultural”, inserido no livro “Construindo a Interculturalidade
Crítica”, publicado em 2010, a interculturalidade se apresenta em três
perspectivas: a primeira é relacional
“faz referência da forma mais básica e geral ao contato e intercâmbio entre
culturas”, a segunda é a funcional ,
“não toca as causas da assimetria e desigualdades sociais e culturais, tampouco
'questiona as regras do jogo', por isso é 'perfeitamente compatível com a
lógica do modelo neoliberal existente' ”, a terceira é a interculturalidade
crítica, “ (…) não partimos do problema da diversidade ou diferença em si, mas
do problema estrutural-colonial- racial. Isto é, de um reconhecimento de que a
diferença se constrói dentro de uma estrutura e matriz colonial do poder
racializado e hierarquizado, com os brancos e 'branqueados' em cima, e os povos
indígenas e afrodescendentes nos anadares inferiores. Aponta e requer a
transformação das estruturas, instituições e relações sociais, e a construção
de condições de estar, ser, pensar, conhecer, aprender , sentir e viver
distintas”.
A
partir dos anos 80, surgiu na América Latina a Educação Intercultural Bilíngue
(EIB), depois nomeada de Educação Intercultural Bilíngue (EIB), só que esse
termo intercultural um sentido duplo (Walsh, 2010):
(...)
um sentido político-reivindicativo, por estar concebido a partir da luta
indígena e com a finalidade de enfrentar
a exclusão e impulsionar uma educação linguisticamente própria e culturalmente
apropriada. Ao mesmo tempo, todavia, o intercultural foi assumindo um sentido
socioestatal de burocratização.
Portanto,
esse direito étnico e coletivo, no Brasil, não foi ainda regularizado através
da edição de lei, entretanto, na escola que se localiza na construção circular na aldeia Água Bonita,
é ensinado para as crianças indígenas, a língua terena.
Dessa
forma, existe essa interculturalidade nas comunidades visitadas, que pode ser
configurada na primeira perspectiva, a interculturalidade relacional, apesar da
boa vontade dos próprios indígenas e dos remanescentes dos quilombos em
disseminar a sua língua e cultura para as futuras gerações, não há interesse do
Poder Público em concretizar a interculturalidade numa perspectiva crítica.
Tendo em vista que esse “ato
pedagógico-político que procura intervir na refundação da sociedade” (Freire,
2004), só irá empoderar esses povos étnicos, cita Catherine Walsh (2010), as
palavras do revolucionário Zapata que dizia ser necessário descravizar as
mentes, faz referência também a Malcom
X, que afirmava que deveríamos
desaprender o desaprendido para voltar a aprender.
Visualizo
bem essa questão do eurocentrismo, e da colonialiadde do poder, quando escuto
por aí que o Jornalista Diogo Mainardi, apresentador
do programa de televisão Manhattan Connection, exibido pelo canal da TV paga
GNT, resolveu morar em Veneza, porque
não queria mais saber dessa “bugrada”, e também é ressaltado o sobrenome do jornalista, “com esse sobrenome, ele pode morar em qualquer lugar da Europa”, ou ainda, quando se faz críticas
as cotas, “porque as pessoas tem que conseguir vagas na universidade ou passar
em concurso, pelo mérito”.
É
assim que se sentem os dominadores, aqueles que tem dinheiro de sobra nesse
país, a Europa é o melhor lugar do mundo para se viver, o Brasil não passa de
uma república de bugres.
Finalizo
com Quijano (2005, p. 126), que brilhantemente ensina: “(...) é tempo de
aprendermos a nos libertar do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre,
necessariamente distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos”.
Acredito
que esse Encontro do Tribunal Popular da Terra seja um dos primeiros passos
para romper com essa dominação eurocêntrica, para descolonizar nossas mentes, a
união dos povos da terra, que foram
excluídos da construção do Estado-Nação pelo sistema capitalista, implica numa
redistribuição radical do poder (Quijano, 2005, p.126), e talvez esse seja um
dos únicos caminhos para se alcançar a sociedade igualitária tão sonhada por
todos.
Bibliografia:
LANDER,
Edgardo (Org). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección
Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005.
Disponível em: < http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/
>, acessado no dia 13 de junho de 2014.
QUIJANO,
Aníbal. Colonialidade do Poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,
Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur,
CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro 2005. p. 107-126.
WALSH,
Catherine. Interculturalidade crítica e educação intercultural. In: VIAÑA,
Jorge; TAPIA, Luis; WALSH, Catherine. Construyendo
Interculturalidad Crítica. La Paz – Bolivia. Instituto Internacional de
Integración del Convenio Andrés Bello. III CAB, 2010.
FREIRE,
Paulo. Pedagogy of Indignation.
Boulder, Colorado: Paradigm.
INCRA. “Incra
reconhece Furnas de Boa Sorte (MS) como área quilombola”.Disponível em:
<http://portal.mda.gov.br/portal/noticias/item?item_id=3574801
>, acessado no dia 16 de junho de 2014.
ITAPEBI
ACONTECE. “Homem é morto com um tiro no
pescoço na área invadida por índios”.
Disponível em: < http://itapebiacontece.com/noticias/3135,itapebi-homem-e-morto-com-um-tiro-no-pescoco-na-area-invadida-por-indios.html
>, acessado no dia 16 de junho de 2014.